31 de agosto de 2009

quem?

"Sou homem: duro pouco
E é enorme a noite.
Mas olho para cima:
As estrelas escrevem.
Sem entender, compreendo:
Também fui escrito
E neste mesmo instante
Alguém me soletra."

Irmandade de Octavio Paz

26 de agosto de 2009

a paixão não se dá nas coisas costumeiras

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)

Do livro “Eu sei, mas não devia“, de Marina Colasanti
no palavraguda

sempre é muito

Ele insistia. Era teimoso, não se contentava com o eu-te-amo. Insistia, insistia.
— Diga que é para sempre.

Ela, querendo ser totalmente sincera, respondia:
— Para sempre… não, não posso dizer.

Engraçado que, lá no fundo, sabia que era para sempre, mas desconfiava de promessas que não pudessem ser cumpridas por culpa da vida. Era como prometer que não se iria morrer.
— Por que você não diz, hem Maria? Você não me ama de verdade?
— E como, João! Amo a você até mais do que a mim mesma, mas a vida…
— Pois eu digo sem medo: amo você para sempre, sempre, sempre…

Maria ria entre feliz e sem graça. E entregava-se a esse amor que fazia cada minuto parecer o sempre.

Um dia João chega muito solene e pede-lhe:
— Maria, mesmo que não seja, diga pra mim que é pra sempre, tá? Quero ouvir “para sempre”.

E Maria passou a dizer o advérbio. A princípio tímida; depois categoricamente.
— Eu te amo, João.
— Muito?
— Muito — respondia ela.
— Para sempre?
— Para sempre — confirmava.

O tempo passava. O amor de Maria por João aumentava. Agora o sempre era uma certeza e a vida só delícias, para todo o sempre.
— Pra sempre te amarei, João.
— Sei disso, Maria. Nós dois somos para sempre.
— É, João, pra sempre.

Maria não tinha dúvidas quanto a João. E muito menos quanto a si mesma.
Eternamente para sempre… para sempre eternamente.

E a felicidade vivia com ela e tão plena estava que nem percebia João fazer-se um talvez. Esquivo hoje, amanhã — e ela não via ou não queria ver. Até que…
— Maria, vou-me embora.
— Por que, uai!
— Não te amo mais, Maria.
— Não?!
— Não.
— Assim, João?
— É.
— Mas não podemos… não posso fazer alguma coisa? Me dá um tempo, João.
— Não, não posso.
— Mas, João!
— Não volto mais, Maria. E é para sempre.

do livro “Porção de Tintas“ de Márcia Carrano
no palavraguda

fale

Esta noite… esta chuva… estas reticências. Sei lá. Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto? Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:

— Estou me sentindo assim, assim, assim…

A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo (…)

Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.

Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.

Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:

— Que é que houve? O senhor está mais velho?

Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:

— O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.

Tinha pensado que, sem os óculos…

Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

(9/10/1964)

“Canção de Homens e Mulheres Lamentáveis” do livro “Com Vocês Antônio Maria”, de Antônio Maria
no palavraguda

mudo fico

“As mudanças desejadas nunca são as que mudam tudo.”
Junot Diáz
no palavraguda

24 de agosto de 2009

seja claro

"Contradiga-se! Seja honesto, mesmo se isso fizer você parecer fraco. Seja forte, mesmo quando isso fizer você parecer arrogante. Evite a mediocridade."
O telescópio de Schopenhauer | Gerard Donovan
no palavraguda

20 de agosto de 2009

preciso ir

"- Vê aquela estrada logo ali na frente? Coloca um pé na frente do outro e vai. Sem olhar pra trás.
- Não posso! Meus pés estão colados a este instante para sempre.
- Se você quiser, eles descolam. Mas só se você quiser.
- Não entendes que este é exatamente o meu problema? Não sei o que quero."
Sabrina Davanzo

sei não

"Vez em quando esse não-sei-o-que que mora dentro de mim sai pra passear e me faz sentir arrepios, querer colo. Ensinaram que é preciso ser forte que nem São Jorge, que faz aniversário junto comigo e mora na lua. Mas lá ele tem as estrelas. Quem eu tenho por aqui? Só as pontas dos meus dedos suados de medo. Aperto com força. A dor faz esquecer dos arrepios e de que esse não-sei-o-que vive prestes a me sufocar."
Sabrina Davanzo

quero asas

"Não posso dar asas a mim mesma. Isso eu descobri tentando algumas vezes. Nunca saí voando embora alguns momentos de imensa alegria ou tristeza fossem propícios para tal feito.
Conformei em dar asas às borboletas e pássaros que dobro cuidadosamente em papéis coloridos.
Depois de trazê-los à vida, não os prendo a mim. Distribuo-os aos meus amigos, que recebem achando graça e querendo aprender dar asas também. Nem que seja à imaginação. É uma corrente que não para. Desde então, todos os dias, nascem dezenas de pássaros e borboletas e, com eles, sorrisos."
Sabrina Davanzo

18 de agosto de 2009

ávido por biscoitos bávaros

"Harold mordeu o biscoito bávaro, sentindo que tudo finalmente ficaria bem.
Às vezes, quando nos perdemos no medo e no desespero, na rotina e na constância, no desespero e na tragédia, podemos agradecer a Deus pelos biscoitos bávaros. E felizmente, quando os biscoitos bávaros acabarem, ainda teremos consolo em uma mão amiga na nossa pele, um gesto gentil e afetuoso, num apoio sutil, num abraço carinhoso.
Sem falar em macas de hospital, segredos sussurados, Fender Stratocasters, e talvez um livro.
Devemos lembrar que todas essas coisas, essas nuances, anomalias e detalhes que parecem superficiais na nossa vida, estão aqui por uma causa bem mais nobre: salvar nossas vidas."
do filme Mais estranho que a ficção

16 de agosto de 2009

é bom

Morango com chantilly
Pipoca com futebol
Preguiça com rede
Varanda com violão

Chuva com cobertor
Escola com diversão
Natal com família
Criança e sorriso no ar

Viagem
Saudade
Irmã com carinho
Azul com sorvete e mar

Cantar, cantar, cantar
Cantar, cantar, cantar
Cantar em qualquer lugar
Eu e você
Sonhar

Do que é bom | Amaranto
Cd Três Pontes

13 de agosto de 2009

procurando

"Passei anos me procurando por lugares nenhuns. Até que não me achei - e fui salvo."
Manoel de Barros

10 de agosto de 2009

verdades

"Acredito ainda nas mesmas coisas. Ainda acho que a dignidade do homem é inseparável das intenções e dos fins a que ele se propõe. Só que, entre as intenções e os fins, quase sempre temos de passar por uma série de mal-entendidos."
Riba, personagem de Dias Gomes, do livro Campeões do Mundo.
no palavraguda

ser

"A única diferença que existe entre mim e meus companheiros é que eles se sentem satisfeitos de si e eu estou muito longe de me sentir satisfeita com eles, e ainda menos comigo."
Excerto de carta datada de Quarta-feira, 7 de março de 1764, Madame Du Deffand, Cartas a Voltaire
no palavraguda

5 de agosto de 2009

velejando

"Mares tranquilos não produzem marinheiros habilidosos"
Provérbio africano

3 de agosto de 2009

valor

"Cresce sempre mais o círculo dos valores superados e esquecidos."
Nietzsche
no palavraguda

parado

"Destino, sabes o que fazes quando sobrevéns com teus furacões na nevada das estrelas, apagando um sol atrás de outro com teu sopro e quando o luminoso orvalhar das constelações cessa de brilhar à tua passagem?"
Jean Paul
no palavraguda